
Por que o governo Lula encaminhou Projeto de Lei tão ruim para o Congresso Nacional poucos dias depois da Câmara aprovar o substitutivo de Walter Pinheiro? A intenção do governo era atrapalhar o processo ou impedir avanços? Estamos tratando de má-fé do governo para com as rádios comunitárias? Quem articulou politicamente este projeto? Alguma entidade colaborou com ele?
Má-fé e retrocesso
Dizem fontes seguras que a história desse projeto começou em setembro do ano passado, quando representantes de entidades de rádios comunitárias estiveram com o ministro da Justiça, Tarso Genro. Desse encontro, e de um acordo posteriormente firmado entre o Ministério da Justiça, Ministério das Comunicações e Casa Civil, teria brotado a proposta.
Sobre esse encontro com Tarso Genro. Fiz duas sugestões ao governo:
1. O Executivo deveria parar de continuar enrolando o movimento das rádios comunitárias.
2. O Executivo já sabe o que fazer. Não se admite mais que erre em questões primárias.
Está claro que esse PL não é um erro, mas uma opção política, um ato de má-fé e um retrocesso para a comunicação popular do país.
"Expor a perigo" a segurança
O que diz o PL 4573/08?
Ele começa mexendo numa velharia ainda viva contida no artigo 151 do Código Penal. A proposta elimina os incisos II, III e IV do parágrafo 1º do art. 151 do Código Penal (Decreto Lei nº 2448/40). Este fóssil jurídico, que ainda fala em coisas como "comunicação telegráfica ou radioelétrica" e em "aparelho radioelétrico", até hoje é usado pela Polícia Federal como justificativa para reprimir rádios não autorizadas. Eis o texto completo. A parte em negrito é a que o Governo pretende subtrair:
"Art. 151 – Devassar indevidamente o conteúdo de correspondência fechada, dirigida a outrem:
Pena – detenção, de um a seis meses, ou multa.
§ 1º – Na mesma pena incorre:
I – quem se apossa indevidamente de correspondência alheia, embora não fechada e, no todo ou em parte, a sonega ou destrói;
II – quem indevidamente divulga, transmite a outrem ou utiliza abusivamente comunicação telegráfica ou radioelétrica dirigida a terceiro, ou conversação telefônica entre outras pessoas;
III – quem impede a comunicação ou a conversação referidas no número anterior;
IV – quem instala ou utiliza estação ou aparelho radioelétrico, sem observância de disposição legal".
Com o fim destes incisos, fica tudo resolvido? Não é bem assim. Trata-se de um engodo, uma armadilha. Porque o PL 4573/08 também propõe mudanças no Parágrafo 1º do artigo 261 do Código Penal.
Diz o texto original do Código Penal em vigor:
"Art. 261 – Expor a perigo embarcação ou aeronave, própria ou alheia, ou praticar qualquer ato tendente a impedir ou dificultar navegação marítima, fluvial ou aérea:
Pena – reclusão, de dois a cinco anos.
Parágrafo 1º – Se do fato resulta naufrágio, submersão ou encalhe de embarcação ou a queda ou destruição de aeronave:
Pena – reclusão, de quatro a doze anos" (grifo nosso).
E agora a proposta do governo de como deve ficar este parágrafo 1º:
"Parágrafo 1º-A Na mesma pena do caput incorre quem, mediante operação de serviços de radiodifusão, expõe a perigo a segurança de serviços de telecomunicações de emergência, de segurança pública ou fins exclusivamente militares, ou, ainda, o funcionamento de equipamentos médico-hospitalares" (grifo nosso).
Politicamente esperto
Observe que originalmente havia uma punição para quem "expõe a perigo" e outra punição no caso de "naufrágio... queda ou destruição de aeronave". Se o acidente acontecia, a punição era maior. Existe uma diferença muito grande nisso. O PL do governo diz que basta a pessoa expor a aeronave ao perigo (não precisa que ocorra o acidente) para que ela seja condenada à pena de reclusão de dois a cinco anos. Hoje, esse tipo de ameaça (reclusão) paira somente sobre aquelas emissoras sem autorização; se esse projeto for aprovado todas podem ser citadas.
Quanto aos riscos às aeronaves, como todo mundo sabe que rádio comunitária não derruba avião, os inimigos das rádios comunitárias nunca iriam ter um avião no chão que servisse de exemplo. Logo, estão tentando adequar o texto legal à ficção que criaram. Com isso, mudam um pouco a justificativa mitológica para repressão: a rádio não derruba avião, mas cria o perigo dele cair.
À parte os deslumbramentos de burocrata, tecnoburocrata ou carrapato do poder, que traz para os dias atuais expressões típicas dos tempos de Machado de Assis ("expõe a perigo") e a vontade férrea de defender o poder (e seu emprego), a redação do PL é uma tentativa escancarada de legitimar os abusos hoje cometidos pelos órgãos de repressão. É sabido que os inimigos das rádios comunitárias usam exatamente esses argumentos (interferência no sistema de aviação, na segurança e nos serviços de saúde) para cobrar mais repressão do Estado. Se hoje os agentes do Estado cometem abusos usando tais bobagens como argumento para fechar rádio, se este PL for aprovado eles estarão dentro da lei para enquadrar e botar na cadeia aqueles que, na sua opinião, merecem punição.
É preciso reconhecer: quem bolou isso, embora tenha mofo no cérebro, foi muito esperto politicamente.
O argumento de "derrubar avião
O mesmo Projeto revoga o Artigo 70 da Lei 4.117/62, mais um fóssil jurídico, este criado pela ditadura militar (Decreto 236/67) ainda hoje usado com pela Polícia Federal. E também estabelece que o artigo 183 da Lei 9472/97 (Lei Geral de Telecomunicações), muito usado pelos agentes da Anatel, não se aplica à radiodifusão.
Se as leis 4.117/62 e 9.472/97 não serão utilizadas para reprimir as emissoras comunitárias, imagina-se que agora se fará uso da legislação de rádios comunitárias, a Lei 9.612/98. Está errado quem pensou nisso. O óbvio não funciona na política. Ao invés de incluir na lei pertinente todas as punições de que o tema trata, o governo transforma o caso num crime de ordem penal.
Enfim, o que temos em resumo nessa primeira parte do projeto é:
1) O Código Penal – e não mais a Lei 4.117/62 ou a Lei 9472/97 – pode ser o instrumento central para reprimir as emissoras, autorizadas ou não.
2) Emissoras autorizadas ou não autorizadas podem ter seus equipamentos apreendidos e seus dirigentes podem ser submetidos ao processo penal. (Antes isso ocorria somente com as não-autorizadas).
3) No Código Penal substitui-se a pena de "detenção, de um a seis meses, ou multa (art. 151) por uma de "reclusão de dois a cinco anos" (art. 261). Trocou seis por meia dúzia mais um pouco.
4) A redação permite uma leitura subjetiva sobre a existência de crime. Um juiz, ou mesmo um desses agentes (!), pode achar que a emissora está provocando interferências em sistemas de segurança, equipamentos hospitalares (aparelho de tomografia?), telecomunicações e aeroviário e fechar a emissora. Hoje é assim. Fecha-se a rádio sob o argumento de que pode derrubar avião. Claro que há um lado otimista: juízes e agentes da Anatel de bom senso vão querer provas antes de fecharem a emissora.
"Apoio cultural"
Para as emissoras não-autorizadas no ar, não bastasse a incursão no Código Penal, o governo propõe um tratamento especial. Diz o texto do seu PL:
"Art. 21– A operação de estação de radiodifusão sem autorização do poder Concedente constitui infração gravíssima sancionada com a apreensão dos equipamentos, multa e a suspensão do processo de autorização de outorga ou a impossibilidade de se habilitar em novo certame até o pagamento da referida multa".
A novidade é que antes o diretor da entidade era "apenas" indiciado em processo na Polícia Federal. Agora, além do indiciamento e da possibilidade de ser preso, e da apreensão dos equipamentos, ele e a entidade recebem uma outra punição: o processo da rádio ao qual está ligado fica paralisado até o pagamento da multa.
O PL propõe modificações no artigo 21 da Lei 9.612/98 (lei das rádios comunitárias), o que trata das infrações cometidas pelas rádios.
Com relação à publicidade, por exemplo, fica valendo o artigo 18, em vigor, que admite a propaganda apenas como "apoio cultural". Mas o que é apoio cultural? A nova proposta do governo é medíocre porque não leva em conta que "apoio cultural" é um conceito sem definição. A norma operacional 01/04 (art. 19.6.1) diz que considera apoio cultural a "divulgação de mensagens institucionais". Mas o que são "mensagens institucionais"? Isso só quem sabe é o agente repressor. O mesmo que aplica a multa quando acha que a rádio está descumprindo esse artigo.
Estado contra o povo
O Capítulo XI, do Decreto 2.615/98, que trata das infrações cometidas pelas rádios comunitárias, lista 29 motivos para punir. Mas não tem aí a questão da publicidade. Hoje, a Anatel multa, mas sem uma base legal. Portanto, esta mudança proposta pelo governo visa a atender aos interesses dos agentes repressores, que precisavam de uma base legal para fazer o que já fazem hoje.
Deve-se considerar que para uma comunidade pobre conseguir recursos para pagar a multa imposta pelo poder público não é fácil. Na falta de recursos, a cobrança vai para dívida pública e os projetos sociais ligados à entidade são vetados – e assim também a própria rádio. Centenas de rádio foram multadas por operarem sem autorização ou por colocarem no ar publicidade que, segundo os agentes, infringe a lei.
A multa é um instrumento de repressão política. Uma estratégia cruel: é criando dívidas que você aniquila o pobre. É o Estado contra o povo brasileiro. A serviço das elites econômicas (e não somente do campo da comunicação), o Estado faz uso desse instrumento.
Uma proposta ridícula
O destaque no projeto do governo é sua ênfase no combate ao proselitismo. Sua proposta estabelece como "infração gravíssima" a prática do proselitismo de qualquer natureza. Mas o que é "proselitismo"? A Lei 9.612/98, em pelo menos dois artigos (art. 4º, parágrafo 1º; art. 11), já faz o veto ao domínio das rádios comunitárias pelas igrejas e ao proselitismo que praticam. Mas, curiosamente, os agentes da Anatel e da PF nunca encontraram isso. Centenas de rádios são dominadas por padres e pastores e eles nada vêem. Em Copacabana, em Brasília, as antenas são maiores do que as torres das igrejas, se avistam a quilômetros, mas nem a PF nem a Anatel conseguem ver. São antenas invisíveis – talvez por razões espirituais. Ou seriam econômicas?
Estudo feito no ano passado pelo professor Venício Lima e pelo consultor legislativo Cristiano Lopes revela aquilo que todo mundo já sabia, mas não tinha provas: o Ministério das Comunicações distribui autorizações de rádios comunitárias para políticos, padres e pastores aliados. Por que o Ministério da Justiça não apura essas denúncias? Por que não descobre quais os servidores públicos envolvidos nesta indecência? Por que a Polícia Federal, a Abin, o FBI, sei lá, não investigam a participação do ministro Hélio Costa nesta distribuição de rádios? Por que a Polícia Federal não investiga como a Igreja Católica conseguiu autorização para mais de 200 rádios ditas comunitárias, se isto é ilegal, imoral, indecente? Por que o Ministério da Justiça não investiga o que ocorre dentro da Casa Civil, aonde montaram um balcão para distribuir rádios comunitárias para X e Y?
Fazer este tipo de coisa, depurar o setor, é muito mais do feitio do Ministério da Justiça e seria muito mais saudável para sociedade, do que fazer alianças com outros ministérios e apresentar esta proposta ridícula de projeto. A gente esperava mais de Tarso Genro e sua equipe.
* Dioclécio Luz é jornalista, mestrando em comunicação pela UnB, autor de "A arte de pensar e fazer rádios comunitárias".
NAS ONDAS DO AR
As rádios comunitárias devem morrer
Por Dioclécio Luz
Jornalista, escritor, diretor do Sindicato dos Jornalistas do Distrito Federal, integrante da "Campanha contra baixaria na TV".
Quando a conversa acaba vem a bala, o cassetete, a cadeia, ou, pior, o silêncio. O silêncio dos cemitérios. É assim hoje no Brasil. A Anatel e a Polícia Federal, arautos do Estado, todo dia calam a voz daqueles que há 500 anos tentam falar. Fecham rádios comunitárias, rádios de baixa potência, porque, segundo eles, elas servem a grupos terroristas e planejam derrubar avião, interferir nos serviços de segurança, servir ao narcotráfico. Por isso tratam essa gente brasileira como se trata traficante: armados de fuzis e metralhadoras. Os agentes do Estado – digo, do Estado neoliberal-popular (transgênico, portanto) – ocupam salas e residências, berram "teje preso!". Algemam e levam para a cadeia os "marginais perigosos", quem tenta fazer rádio comunitária. Levam no camburão, que é para mostrar quem manda. E quem manda são eles.
É o tempo do medo
O governo Luiz Inácio Lula da Silva decretou morte às rádios comunitárias.
Na repressão às rádios, atuam a Anatel e a Polícia Federal. Mas a Polícia Militar e até a Polícia Civil já se apresentaram para a nobre causa de calar a voz do povo. Mais um pouco e até guarda noturno vai querer prender quem faz rádio comunitária.
Depois de dois anos no governo, Lula continua insistindo em tratar rádio comunitária como caso de polícia ou de cartório. De polícia quando a rádio não tem o papel (a autorização) fornecido pelo cartório que é o Ministério das Comunicações (MiniCom). De cartório porque o MiniCom mantém uma burocracia que emperra o processo de legalização das rádios comunitárias. Intencionalmente, diga-se de passagem. Porque, se quisesse, poderia fazer bem mais. Mas isto é assunto para linhas adiante.
Poder divino
Primeiro, veja-se a polícia. Neste momento mais de mil pessoas estão sendo processadas por operarem emissoras clandestinas. De acordo com documentos oficiais da Polícia Federal, as prisões em alguns estados são feitas com base no artigo 70 da Lei 4.117/62, o Código Brasileiro de Telecomunicações (CBT); em outros estados as ações são feitas com base no artigo 183 da lei 9.472/97, a Lei Geral de Telecomunicações (LGT).
Por que usam esses dispositivos? Porque os dois garantem cadeia para quem opera sem autorização. Poderiam usar, quem sabe?, um dispositivo menos duro, um que manda fechar, ou que dá advertência – no extremo, apreender os equipamentos... Mas, não, é preciso botar na cadeia! É preciso humilhar!
Em outubro passado, uma delegada da Polícia Federal, em Guarulhos (SP), enquadrou os que faziam uma rádio sem autorização por "formação de quadrilha". Ao fazer isso, ela sabia, estava tirando o direito das pessoas de pagarem fiança e responderem o processo em liberdade. Ela queria humilhar. Na verdade, ela julgou e condenou os autores do "crime" à pena máxima: serem colocados no meio de bandidos, assaltantes, traficantes. Ela julgou e condenou essas pessoas à humilhação.
A emissora fechada em Guarulhos era dirigida por um grupo de evangélicos. De fato, não era comunitária. Mas nenhum aparato de Estado tem o direito de fazer isso com as pessoas. Nenhum Estado decente pode ter esse poder de humilhar as pessoas. Nenhum agente público poderia fazer isso com um brasileiro. Quem deu esse poder à delegada? Quem lhe deu o direito de punir com a humilhação um grupo de evangélicos que queriam expressar sua fé? Aqui se acusa.
O responsável por tudo isso, por omissão ou cumplicidade, o que dá no mesmo, é o governo Lula.
Eficiência política
Em 2003, a Anatel e a Polícia Federal fecharam 4.300 rádios. Em 2004, graças à extraordinária eficiência destes órgãos, o número deve se igualar. É uma eficiência rara. Hoje, se falta dinheiro à PF, a Anatel paga combustíveis e diárias para os agentes. Se um juiz dá liminar pela abertura da rádio, a Anatel recorre! E vai mais: a Anatel está em campanha junto ao Judiciário tentando fazer a cabeça dos juizes, convencendo-os de que os aviões são feitos de lata e madeira comida de cupim e, por isso, podem ser derrubados por um transmissor de 25 watts.
Trata-se de uma grande mentira que a Anatel e as emissoras comerciais propagam por todo país. Se um transmissor de 25 watts ou de 25 mil watts derrubasse avião ninguém deveria andar nesses troços. E terroristas poderosos, como Bush e bin Laden, ao invés de bomba, usariam tal expediente para suas ações. Sairia bem mais barato.
A Anatel, é bom não esquecer, foi criada no governo Fernando Henrique Cardoso para atender ao mercado. Por isso ela tem esse formato transgênico: por fora, em suas ações, é mercado; por dentro, é sustentada com recursos públicos.
De um modo geral, as agências se constituem na melhor invenção do mercado. Eis um órgão público, mantido pelo Estado, com servidores concursados, mas que deve ser "independente", isto é, estar a serviço do mercado. Por isso a Anatel é tão eficiente em coibir as rádios de baixa potência e tão ineficiente quando se trata de fiscalizar o mercado.
Em meados de novembro deste ano, o Tribunal de Contas da União denunciou que a tecnologia usada pela Anatel para fiscalizar as empresas telefônicas era obsoleta. Isto é, não funciona. Quando se trata de rádios comunitárias a Anatel utiliza o artefato mais caro e moderno que existe, mas quando se trata de fiscalizar o mercado mantém um sistema obsoleto. Por quê? Porque não é para funcionar quando se trata do mercado.
Em outubro passado, em Brasília, o Ministério Público determinou às telefônicas que tirassem suas torres das proximidades de escolas e hospitais por representarem riscos à saúde. Imediatamente apareceu um técnico da Anatel dizendo que isso seria complicado (isto é, caro) para as empresas, e que não havia riscos. Por essas e outras é que, quando alguém anuncia que vai mexer na Anatel, tudo que é dono de empresa telefônica, concessionário de rádio ou TV comercial sai em defesa do órgão.
Será que o governo Lula não sabe disso? Será que vai insistir no modelo das agências? Será que o governo não sabe que as agências se constituem num dos pilares de sustentação do projeto neoliberal? Ele não sabe que uma sociedade mais justa nunca acontecerá num estado neoliberal?
Trata-se, portanto, de uma questão política. E política de Estado. A repressão às rádios se dá dentro deste contexto. Um contexto de fatos vergonhosos, como a ação policial e da Anatel com eficiência e modos similares aos tempos da ditadura militar.
A Anatel e a PF usam dispositivos criados pela ditadura militar. É o caso do artigo 70, da Lei 4.117/62, que pune com até 3 anos de cadeia quem opera sem autorização. O artigo foi adicionado à lei por um Decreto-lei (236/67) assinado pelo general Humberto de Alencar Castelo Branco. A função desse artigo, à época, era botar na cadeia "os inimigos do regime". Como ele se encontra em vigor até hoje, acredita-se que os inimigos do regime são o povo brasileiro, que insiste em viver e em querer se comunicar.
O outro dispositivo usado para reprimir é a Lei Geral de Telecomunicações (artigo 183, cadeia de 2 a 4 anos), obra do homem que privatizou o país, Fernando Henrique Cardoso.
Em resumo: para calar a voz do povo, Lula usa um dispositivo criado pela ditadura militar e outro criado por FHC. E o extraordinário nisso é que os dois dispositivos tratam de telecomunicações e não de radiodifusão – e, portanto, não se aplicariam às rádios comunitárias.
Fora do ar!
Em suas manifestações, os órgãos públicos alegam seguir à lei para fazer a repressão. Mas a lei não fala que a Anatel tem pagar diária à PF, recorrer na Justiça quando algum juiz defender uma rádio, ou tentar fazer a cabeça de juizes. Qual a lei que eles dizem seguir? A antes citada, que aborda a repressão, e a legislação que regulamenta as rádios comunitárias: Lei nº 9.612/98, Decreto 2.615/98 e Norma Operacional 01/04.
O conjunto da legislação estabelece uma série de limites, de "não pode": o alcance da rádio comunitária não pode ir além de 1km, a rádio não pode veicular publicidade, não pode entrar em rede com outras rádios, os diretores não podem morar fora do raio de 1km, não pode ter proteção do Estado para interferências de emissoras comerciais... Enfim, a rádio não pode existir.
Essa legislação está em vigor. É a pior da América Latina no tocante a rádios comunitárias. Não se sabe de uma legislação pior no mundo. O que o governo fez para mudar isso? Nada. Corrija-se: piorou mais ainda.
O Ministério das Comunicações fez uma nova Norma Operacional (01/04) que burocratiza mais ainda o processo e estabelece outros "não pode". A burocracia é tão pirandelliana* que pede até uma declaração da entidade de que ela vai seguir a lei. Não se sabe se isso foi um ato de burrice explícita ou simplesmente de má-fé de algum burocrata viciado em papéis.
As ações de má-fé do governo com relação às rádios comunitárias são mais explícitas. Por exemplo, no governo FHC, a Anatel designou como único canal para todas as rádios comunitárias, o 200, correspondente a freqüência de 87,9 MHz. Em alguns casos, destinou-se um canal alternativo.
No governo Lula, a Anatel – pressionada por um movimento legítimo de mais espaço no dial de São Paulo – achou por bem indicar mais dois canais – duas opções, mais exatamente, porque a lei só permite um canal por município. E designou as freqüências de 87,5 e 87,7 MHz.
Então, graças ao governo Lula, as rádios comunitárias têm três opções de canais. Ótimo. Não. Má-fé. Porque todos estes canais estão fora do dial! No dial do rádio, a faixa de operações em FM vai de 88 MHz a 108 MHz – e as rádios vão operar abaixo de 88 MHz. Como os aparelhos de rádio a princípio não foram feitos para receber sinais abaixo de 88 MHz, imagina-se que as rádios comunitárias irão transmitir para o nada. Eis uma situação surrealista.
Carrapatos do poder
Argumentam os tecnocratas e burocratas e carrapatos do poder que se trata de uma decisão técnica. Isto não é verdade. É, sim, uma opção política. Por exemplo, pergunte-se às emissoras ligadas a grupos poderosos, como a CBN, Globo, Transamérica, se elas topariam atuar nestes canais fora do dial. "Você pensa que eu sou idiota?", seria a resposta publicável.
Foi uma decisão política mascarada como técnica. E muito mal mascarada. A Anatel chegou a contratar o CPqD, que apresentou estudo justificando a escolha dos novos canais. O tal "estudo", porém, é visivelmente político. Há uma clara intenção de exclusão de um serviço considerado de quinta categoria, de gente pobre, chata, marginal. O estudo é preconceituoso, para dizer o mínimo. Eis algumas pérolas desse estudo:
"Embora o canal 200 esteja designado para uso exclusivo do Serviço de RadCom, em nível nacional, na prática ele não pode ser designado para diversos municípios devido à interferência que provocaria em alguns canais previstos ou autorizados na faixa de freqüência para o serviço de radiodifusão sonora em FM e o canal 6 de TV/RTV."
O CPqD já sai em defesa das emissoras comerciais, que, na sua visão preconceituosa, são superiores. Mais adiante reconhece, com grifo dele, que o canal 200 está fora da faixa:
"Este obstáculo levou a agência a designar para execução do serviço de RadCom, em algumas localidades, canais alternativos dentro da faixa de FM com os seguintes inconvenientes:
(...)
A presença de estações de RadCom na mesma faixa de freqüência das estações de FM dificulta a fiscalização e a identificação de estações não autorizadas."
No texto acima o preconceito é explícito. O CPqD – que já foi instituição pública e agora, bem se vê, é privada – não considera que estações de rádios comunitárias sejam estações de FM. E partindo do pressuposto que as rádios comunitárias são constituídas por marginais, piratas e bandidos, alerta para o risco delas ficarem dentro da faixa de FM – isto atrapalharia a repressão sobre elas.
Na verdade, este governo nem cumpre a lei, mesmo uma lei ruim como esta. Eis alguns exemplos. Diz o artigo 20 da Lei 9.612/98 (grifos meus):
"Compete ao Poder Concedente estimular o desenvolvimento de Serviço de Radiodifusão Comunitária em todo o território nacional, podendo, para tanto, elaborar Manual de Legislação, Conhecimentos e Ética para uso das rádios comunitárias e organizar cursos de treinamento, destinados aos interessados na operação de emissoras comunitárias, visando o seu aprimoramento e a melhoria na execução do serviço."
Desde a promulgação da lei, quantos cursos e treinamentos o Ministério das Comunicações realizou até hoje? Zero.
Diz o artigo 4º, § 1º da lei 9.612/98:
"É vedado o proselitismo de qualquer natureza na programação das emissoras de radiodifusão comunitária."
Diz ainda o artigo 11 da lei 9.612/98:
"A entidade detentora de autorização para execução do Serviço de Radiodifusão Comunitária não poderá estabelecer ou manter vínculos que a subordinem ou a sujeitem à gerência, à administração, ao domínio, ao comando ou à orientação de qualquer outra entidade, mediante compromissos ou relações financeiras, religiosas, familiares, político-partidárias ou comerciais."
Ora, o mundo inteiro – menos o governo – sabe que boa parte das 2.199 autorizações até hoje concedidas pelo Ministério das Comunicações está nas mãos da Igreja Católica ou uma das ramificações evangélicas. Isto é ilegal! Mas o Ministério das Comunicações e a Anatel nada fazem para coibir. É preciso haver uma revisão das autorizações concedidas.
Este é mais um motivo para não se acreditar neste papel concedido pelo governo. Um papel na parede, com a autorização oficial, não diz que a rádio é ou não comunitária. É apenas um papel – concedido pelo cartório estatal – que dá direito àquela emissora de funcionar "como se fosse" uma rádio comunitária.
Em 2003 o Ministério das Comunicações, entregue a Miro Teixeira, formou um Grupo de Trabalho com a finalidade de encontrar um jeito de reduzir a burocracia no próprio ministério, porque havia 8 mil processos parados nesse cartório. O fato é, por si, estranho: chamar um grupo para resolver um problema burocrático interno. Houve outra estranheza nisso: Miro Teixeira incluiu nesse GT um representante da Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e Televisão (Abert), inimiga das comunitárias. No que esta pessoa contribuiria? Em nada. Ela entrou nesse GT com a missão de impedir que o grupo fizesse propostas mais avançadas.
Mas, apesar do ministro e do ministério, o GT até que trabalhou, apresentou propostas para reduzir a burocracia e outras que resolveriam alguns problemas maiores das rádios comunitárias. O ministro Miro mostrou que é um político experiente na arte de fazer política pelo poder. O atual, Eunício Oliveira (proprietário de emissoras no Ceará), fez algumas mudanças burocráticas, mas as principais propostas foram para o lixo. Não se constituiu um conselho de rádio comunitária e muito menos o governo encaminhou ao Congresso uma nova proposta de legislação, como pediu o GT.
Legislativo não faz leis
O argumento de todos os burocratas e tecnocratas e autoridades do atual governo para nada fazer é que eles têm que seguir a lei, e que mudar a lei é função do Legislativo. Conversa. Eles sabem que não é assim na política.
Estudo realizado pela Consultoria da Câmara dos Deputados revela que das 119 leis aprovadas pelo governo Lula até outubro de 2004, somente 10% foram feitas pelos parlamentares. Com o Governo FHC foi a mesma coisa. Portanto, quem faz leis neste país não é o Legislativo, mas o Executivo.
O Congresso Nacional tem hoje tramitando 43 projetos de lei sobre rádios comunitárias. Desse total, 17 aperfeiçoam a legislação vigente; 18 deles pioram o que já é ruim. Todos esses projetos estão hibernando na Comissão de Ciência e Tecnologia. Nada anda. Só vai andar se o governo quiser. Porque nesta comissão se encontram os interesses dos poderosos da comunicação no país, e o governo Lula tem medo dessa gente. Daí, na hora de escolher as comissões, mesmo o PT, que é o maior partido na Câmara e ocupa a presidência da Casa, não ousa pegar a presidência da Comissão de Ciência e Tecnologia, e a deixa com os de sempre.
Tudo isso é muito simbólico. O Brasil tem historicamente dois grandes latifúndios: o das comunicações e o da terra. Neles se concentram as duas maiores forças políticas do país, responsáveis pela cruel realidade do povo brasileiro. Pois bem, o Ministério da Agricultura e a Comissão de Agricultura foram entregues aos respectivos latifundiários do setor; o das Comunicações e a Comissão de Ciência e Tecnologia, idem. Isto é uma sinalização histórica. Um equívoco que vai pesar na história de Lula.
São equívocos e omissões que insistem em acontecer. No início de 2004, o governo convocou algumas pessoas e entidades com a proposta de realizar uma Conferência Nacional de Radiodifusão Comunitária. Mais um ato surrealista: quem estava na organização da Conferência não era o Ministério das Comunicações, mas a Fundação Banco do Brasil, Casa Civil, e até o programa Fome Zero! O ministério entrou nas primeiras discussões, mas quando viu que poderia sobrar para ele, caiu fora. E como fazer uma Conferência sobre comunicação sem o Ministério das Comunicações?
Então o governo apresentou sua proposta de eixo da conferência: nada que se referisse a mudanças na lei, fim da repressão, anistia aos que estavam sendo processados, devolução dos equipamentos apreendidos e, o principal, mudanças no modelo político de comunicação.
O governo, com o apoio de entidades como o Viva Rio (aquela que distribui programas da Globo para as rádios comunitárias), queria discutir código de ética, associativismo... Mais surrealismo. Era a proposta de quem estava fugindo ao embate do momento, ou desconhecia a realidade das rádios comunitárias. Como o movimento não aceitou esta pauta, a Conferência gorou.
Mais GTs
Na sexta-feira (26/11/2004), por decreto, o Governo montou um novo Grupo de Trabalho. Os objetivos desse GT são genéricos, mas não trata do principal. Ainda inclui um deboche: o GT pretende encontrar formas de "aperfeiçoar" a fiscalização – isto é, melhorar a eficiência da Anatel/PF na repressão.
É um grupo fechado no governo, não tem a sociedade civil. O que se pode esperar dessa gente? Por que ao invés de fazer GTs e mais GTs o governo não faz o óbvio (em cinco minutos é possível para qualquer pessoa bem-informada do movimento de rádios comunitárias revelar a realidade vivida por ele)? Por que, ao invés de um novo GT, não implementa as boas decisões do anterior? Será que o governo está tentando, mais uma vez, enrolar aqueles que atuam com rádios comunitárias, fugindo aos seus compromissos com o povo brasileiro?
É preciso deixar bem claro que, ao contrário do que dizem os burocratas e tecnocratas e autoridades comprometidas com a elite nacional, o governo Lula tem condições de fazer muito pelas rádios comunitárias. Eis algumas das ações que poderia encaminhar:
* Modificar o atual modelo de comunicação que privilegia o latifúndio da comunicação, estabelecendo regras que proíbam a concentração dos meios, e abrindo mais espaço para as emissoras comunitárias, educativas e estatais. Em outras palavras: deflagrar uma reforma agrária do ar.
* Elaborar um novo texto para o Decreto 2.615, corrigindo as deficiências do atual.
* Elaborar uma Norma Operacional menos burocrática e limitadora.
* Apresentar PL modificando a Lei 9.612.
* Apresentar Medida Provisória anistiando os que foram criminalizados na Lei 4.117/62 e Lei 9.472/97.
* Apresentar Medida Provisória determinando a devolução dos equipamentos apreendidos.
* Apresentar Medida Provisória revogando o art. 70 da Lei 4.117/62 e o art. 183 da Lei 9.472/97.
* A Advocacia Geral da União poderia dar parecer contrário ao uso dos Arts. 70 e 183, acabando com a repressão.
* Realizar cursos de qualificação.
* Inserir os canais de rádios comunitárias na faixa do dial.
* Inserir a TV comunitária no sinal aberto.
* Inserir publicidade oficial paga nas rádios comunitárias.
* Criar fundo para as rádios e TVs comunitárias.
* Fazer uma manifestação pública em defesa dos que fazem rádio comunitária. (Até hoje, com o pau comendo nas rádios, o governo não fez uma só manifestação nesse sentido.)
A questão das rádios comunitárias no Brasil é essencialmente política. A realidade mostra que a população brasileira não tem acesso aos meios de comunicação, é diariamente agredida com violações dos direitos humanos, e submetida a uma legislação que sedimenta uma exclusão secular.
Basta do governo fazer articulação política para se sustentar no poder. Temos aqui a busca do poder pelo poder. O povo quer mudança. Lula precisa dizer a que veio. Basta das autoridades tentarem fugir às suas obrigações, mascarando o que é decisão (ou indecisão política) como técnica, transferindo responsabilidades do Executivo para o Legislativo.
Um exemplo de como o atual governo faz política nessa área: Há casos de rádios autorizadas pelo Ministério das Comunicações há mais seis meses, mas que não chegam ao Congresso Nacional porque a Casa Civil guardou para si o direito de "autorizá-los" politicamente. Criou-se uma nova instância de deliberação sobre as rádios comunitárias: a Casa Civil. Nem no Governo neoliberal de FHC se fazia isso.
Afirmar que o governo tenta matar as rádios comunitárias não é exagero. Todas as ações realizadas pelo governo Lula – principalmente as omissões – indicam uma intenção oficial de impedir a operação das rádios comunitárias. Ela é derivada de compromissos assumidos com a elite econômica e, principalmente, com o latifúndio da comunicação. Se 70% dos recursos de publicidade, incluindo os das estatais, vai para uma única empresa, e um percentual quase zero vai para as estatais, e nada vai as comunitárias, é porque se optou por servir ao latifúndio.
Poderia se argumentar que o Governo age assim, desprezando e aniquilando as rádios comunitárias, por desconhecer o assunto. Se esta ignorância, que cheira à burrice se for verdade, é inadmissível. É inadmissível que o governo desconheça a realidade das rádios comunitárias. Não se admite que o PT, sendo um partido nascido nas bases populares, desconheça o que acontece hoje com as rádios comunitárias. Seria um caso de incompetência ou desvirtuamento ideológico.
Do povo brasileiro está sendo tirado seu direito de falar. Sem voz, ele não tem acesso à informação, cultura, destino. Não tem liberdade de expressão. E quem não se comunica, morre, diz uma das leis da natureza. Se o povo brasileiro, sem voz (também sem terra, moradia, água, energia, escola, saúde...) há tanto tempo não morreu, foi por pura teimosia e esperança. Esta esperança sempre esteve associada ao medo; embora algumas vezes a esperança tenha sido maior que o medo. Mas hoje, quando se deflagra um processo político de destruição das rádios comunitárias, com a Polícia Federal invadindo salas, residências, batendo nas pessoas, algemando, enquadrando por "formação de quadrilha", o medo é maior. Muito grande.
O que se escuta dos agentes do Estado é: As rádios comunitárias devem morrer. E o povo responde: Fujam que a polícia vem aí; fujam que o governo Lula chegou.
Fonte: Observatório da Imprensa
Anatel fechou 6.716 emissoras em cinco anos
Estado de S.Paulo - Nacional
Felipe Werneck
A Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel) fechou 6.716 rádios consideradas clandestinas no País em cinco anos. O número é quase o dobro do total de autorizações (3.652) do Ministério das Comunicações para o funcionamento de rádios comunitárias em dez anos. Existem hoje cerca de 15 mil rádios como essas em operação, diz a Associação Brasileira de Radiodifusão Comunitária. "As rádios não querem ficar clandestinas, mas há 18 mil pedidos de autorização e só 3 mil foram aprovados em quase 11 anos", diz Sebastião Santos, um dos fundadores da entidade.
Fonte: AESP com hl.com
Nesse Link podem ouvir o compromisso firmado do Presidente Lula com as Rádios Comunitárias
http://www.youtube.com/watch?v=_TIbo8Uk0PU
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