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A partir do momento em que se tentou fazer a primeira regulamentação do setor de radiodifusão instalou-se um novo poder no Brasil, o poder das empresas que atuam na área. O Código Brasileiro de Telecomunicações (Lei 4.117/62) nasceu sob o crivo da ABERT, antes mesmo dela existir. A ABERT foi criada em 27 de setembro, dois meses depois da promulgação lei. Isto é, ao se fazer o ajuste legislativo para normatizar as atividades das empresas de comunicação, elas já mostravam que tinham o poder. O Estado cedeu diante da pressão, priorizando os interesses dos empresários sobre o da população.
O Estado militar, instaurado em 1964, não modificou esta relação de forças. Pelo contrário, o golpe foi conspirado e viabilizado com a participação efetiva dos grandes órgãos de imprensa. Certamente ele não teria acontecido se esta relação do empresariado das comunicações com o poder não fosse tão íntima e os interesses não fossem os mesmos. A censura que posteriormente se abateu sobre eles foi algo com que não contavam, mas era e é natural num processo ditatorial. E se os empresários da comunicação, posam hoje como defensores da democracia, é porque acham que a gente não tem memória. Muitos lucraram com o regime ditatorial.
O que aconteceu ao longo do tempo foi que o Estado brasileiro, dominado pelas elites jurássicas, grudou-se às empresas de comunicação, e estas usaram-no e usam-no conforme seus interesses. Tal relação gera inversões de conceitos. Por exemplo, o espectro eletromagnético pertence à União, a concessão é de algo que pertence à União, porém, nas relações com o Estado e com o povo, o concessionário – a emissora – se considera acima destas instâncias. Basta ver que há um flagrante desrespeito à Constituição, no que tange ao cumprimento de regras estabelecidas na Lei maior: promover a educação, a cultura, as artes; não formar monopólio; promover a cultura regional... Nada disso é seguido e não há um órgão capaz de dizer não.
Os direitos civis dizem respeito à personalidade do indivíduo (liberdade pessoal, de pensamento, de religião e liberdade econômica), através do qual é garantido a ele uma esfera de arbítrio, desde que seu comportamento não viole os dos outros. São direitos de primeira geração.
De segunda geração, são os direitos políticos (liberdade de associação nos partidos, direitos eleitorais) que estão ligados à formação do Estado. E, por fim, os direitos sociais (direito ao trabalho, à assistência ao estudo, à tutela da saúde), regido pelas novas exigências da sociedade.
A informação – na forma da liberdade de pensamento, de expressão, de culto e reunião – enquanto insumo básico da cidadania faz parte da primeira geração dos direitos humanos. No entanto, fora das ditaduras e dos governos autoritários, a informação tomou o caráter de produto. Veste-se de democrata, propaga-se como instrumento do chamado mundo livre, oculta assim seu aspecto discriminador.
Informação tem propriedade e ideologia. Não há como considerar que há democracia nos meios de comunicação se há um controle empresarial, de mercado, e não da população, sobre suas atividades. Não há democracia nos meios de comunicação se o Estado se omite do seu papel de guardião dos direitos da população e cede às pressões do poder do mercado.
Os direitos humanos não podem existir sem liberdade de palavra, de imprensa e de reunião. As transformações dessas liberdades num direito de comunicar, individual ou coletivamente, é um princípio evolutivo no processo de democratização.
“Hoje em dia se considera que a comunicação é um aspecto dos direitos humanos. Mas esse direito é cada vez mais concebido como o direito de comunicar, passando-se por cima do direito de receber comunicação ou ser informado. Acredita-se que a comunicação seja um processo bidirecional, cujos participantes – individuais ou coletivos – mantém um diálogo democrático e equilibrado. Essa idéia de diálogo, contraposta a de monólogo, é a própria base de muitas idéias atuais que levam ao reconhecimento de novos direitos humanos.”
Do mesmo modo como o termo “democracia” é estuprado quando citado pela ABERT, também o é “comunicação. Diz Luis Ramiro Beltrán, da Colômbia):
“O que ocorre freqüentemente, sob o rótulo de comunicação, é pouco mais que um autoritário monólogo, no interesse do iniciador do processo. Não se emprega a retroalimentação para dar oportunidade de autêntico diálogo. O receptor das mensagens é passivo e submisso, pois quase não lhe dão oportunidades proporcionais de agir com verdadeiro e livre emissor; seu papel essencial consiste em escutar e obedecer. Uma relação social tão vertical, assimétrica e quase autoritária constitui num exemplo antidemocrático de comunicação. Devemos ser capazes de construir um conceito novo de comunicação. Um modelo humanizado, não elitista, democrático e não-mercantil.”
“Na época da Ágora e do foro, na época da comunicação interpessoal direta, surge primeiro – conceito básico para todo o progresso humano e para civilização – a liberdade de opinião. O surgimento da imprensa, que foi o primeiro dos meios de expressão de massa, provocou, pela sua própria expressão e contra as prerrogativas de controles reais ou religiosas, o correlato conceito de liberdade de expressão. O século 19 caracterizou-se por lutas constantes em prol da liberdade. A chegada sucessiva de outros meios de comunicação de massas – cinema, rádio, televisão – da mesma forma que o abuso de todas as propagandas em véspera de guerra, demonstraram rapidamente a necessidade e a possibilidade de um direito preciso, porém mais extenso, a saber, o de procurar receber e difundir as informações e as idéias sem consideração de fronteiras. Hoje em dia parece possível um novo passo adiante: o direito do ser humano à comunicação.”
O Art. 5º da Carta Magna estabelece como direitos e deveres individuais e coletivos que “é livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato” (inciso IV) e que “é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independente de censura ou licença” (inciso IX).
Se aqui libera, no artigo 223, fecha. Lá se diz que “compete à União outorgar e renovar concessão, permissão, autorização para o serviço de radiodifusão sonora e de sons e imagens...”. Uma leitura na visão dos donos da comunicação no país, diz que você pode falar desde que não seja numa emissora de rádio ou televisão. Neste caso, precisaria do Estado para outorgar; mas, sendo o Estado vassalo da ABERT...
No entanto, conforme o juiz federal Paulo Fernando Silveira, de Minas Gerais, o Artigo 5 é cláusula pétrea. Está acima de qualquer outra injução desta mesma Lei. Portanto, se há liberdade, não pode haver outro que restrinja. No caso, deve-se ler o Artigo 223 quando se tratar de demanda que atinja todo Estado. Por exemplo, as rádios comunitárias seriam da alçada do município e não da União. E, acima de tudo, vale a cláusula da liberdade individual.
“O princípio básico de que o indivíduo ou grupo tem habilidade de expressar diferentes e impopulares pontos de vista, sem prévia contenção ou punição, constitui elemento necessário para qualquer sociedade livre e democrática. É indispensável tanto para o indivíduo quanto para sociedade. Sem liberdade de expressão, o indivíduo não é verdadeiramente livre. E não pode ser um ativo participante ou manter o respeito próprio e sua dignidade. Expressão não é o que o indivíduo faz; é, no sentido mais profundo, parte integral do que o povo é”. (David Kairys, 1993).
O que se debate, portanto, são os direitos coletivos diante de uma minoria que detém o poder econômico, político e, assim, o de comunicação – ou na ordem inversa. Se esta minoria faz as leis, exatamente para conter a expressão do povo, a legítima democracia nos meios de comunicação, a lei deve ser acatada? Evidentemente que não. O Estado, a priori, existe para dar felicidade ao povo. Quando ele foge de sua missão e função, e impõe regras que não servem ao povo, que se mude o governante ou as regras.
A Anatel poderia se guiar pela FCC (Federal Comunication Comisson, dos EUA). Em 1940, a Suprema Corte dos Estados Unidos tomou posição diante de uma pendenga com as emissoras de rádio que alegavam violação ao direito de propriedade porque o FCC colocara outros concessionários numa mesma área. A decisão da Suprema Corte se tornou jurisprudência internacional: “A orientação da lei é clara. Ninguém pode alegar direito de propriedade como resultado de uma concessão. O propósito da lei não é proteger concessionárias contra a competição, mas proteger o público.”
Em 1975, a mesma FCC proibiu que fossem outorgadas futuras concessões de rádio ou televisão a proprietários de jornais diários. Os donos de jornais consideraram que feria a liberdade de expressão dos proprietários de jornais. Mais uma vez a Suprema Corte foi chamada a opinar, e sua posição foi precisa: “o argumento ignora a proposição fundamental de que não há direito de radiodifusão que se possa comparar ao direito de cada indivíduo falar, escrever ou publicar”. Segundo a Corte, a escassez de canais impunha a regulamentação e a questão era menos de direitos pessoas que de “interesse públicos”, ferido pela posse de muitos meios eletrônicos, ou a posse simultânea de rádios ou TVs e de imprensa gráfica.
Evidentemente que os Estados Unidos não se constituem em modelo para ninguém de país que respeita os direitos humanos, os deles e muito menos os de fora. Mas o que se explicita aqui é a necessidade de se estabelecer fronteiras para expansão de monopólios e, deste modo, evitar a onipresença de uma fonte única e sistemática de informação, como ocorre hoje no Brasil. A Constituição brasileira – Art. 220 – diz claramente que o monopólio e o oligopólio são proibidos. O Estado não obriga a obediência a esta norma, e essa nada acontece. Os direitos da ABERT estão sempre acima dos direitos do cidadão comum, essa é a grande verdade e ponto final.
Hélder Loureiro é jornalista, radialista e advogado.